Friday, February 4, 2011

É Hora de Rasparmos a Tinta

Que todos possam perder (ganhar) um tempinho na leitura deste artigo. Creio que para um começo de ano é bom repensarmos quem somos, onde estamos, o que estamos fazendo. E como disse a amiga que o enviou-me: "Este texto é um Convite a Vida, a Liberdade, a Cristo. Um Convite à desconstrução acerca de Deus. Ótima semana de reflexão para todos." 

"O essencial é saber ver. Mas isso exige um estudo profundo, uma aprendizagem de desaprender. Procuro despir-me do que aprendi, procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram, e raspar a tinta com que me pintaram os sentidos...” Volta-me à memória o meu amigo raspando a tinta das paredes da casa centenária que comprara, tantas tinham sido as demãos, cada morador a pintar de uma cor nova sobre a cor antiga. Mas ele a amou como uma namorada. Não queria pôr vestido novo sobre vestido velho. Queria vê-la nua. Foi necessário um longo strip tease, raspagens sucessivas, até que ela, nua, mostrasse seu corpo original: pinho de riga marfim com sinuosas listras marrom.

Nós. Casas. Vão-nos pintando pela vida afora até que memória não mais existe do nosso corpo original. O rosto? Perdido. Máscara de palavras. Quem somos? Não sabemos. Para saber é preciso esquecer, desaprender.

Segunda aranha, segundo fio, Bernardo Soares: nós só vemos aquilo que somos. Ingênuos, pensamos que os olhos são puros, dignos de confiança, que eles realmente vêem as coisas tais como elas são. Puro engano. Os olhos são pintores: eles pintam o mundo de fora com as cores que moram dentro deles. Olho luminoso vê mundo colorido; olho trevoso vê mundo negro.

Nem Deus escapou. Mistério tão grande que ninguém jamais viu, e até se interditou aos homens fazer sobre ele qualquer exercício de pintura, segundo mandamento, “não farás para ti imagem“, tendo sido proibido até, com pena de morte, que o seu próprio nome fosse pronunciado. Mas os homens desobedeceram. Desandaram a pintar o grande mistério como quem pinta casa. E a cada nova demão de tinta mais o mistério se parecia com as caras daqueles que o pintavam. Até que o mistério desapareceu, sumiu, foi esquecido, enterrado sob as montanhas de palavras que os homens empilharam sobre o seu vazio. Cada um pintou Deus do seu jeito. Disse Ângelus Silésius: o olho através do qual Deus me vê é o mesmo olho através do qual eu vejo Deus. E assim Deus virou vingador que administra um inferno, inimigo da vida que ordena a morte, eunuco que ordena a abstinência, juiz que condena, carrasco que mata, banqueiro que executa débitos, inquisidor que acende fogueiras, guerreiro que mata os inimigos, igualzinho aos pintores que o pintaram.

E aqui estamos nós diante desse mural milenar gigantesco onde foram pintados rostos que os religiosos dizem ser rostos de Deus. Cruz credo! Exorcizo. Deus não pode ser assim tão feio. Deus tem de ser bonito. Feio é o cremulhão, o cão, o coisa-ruim, o demo. Retratos de quem pintou, isso sim. Menos que caricatura. Caricatura tem parescença. Máscaras. Ídolos. Para se voltar a Deus é preciso esquecer, esquecer muito, desaprender o aprendido, raspar a tinta...

Os que não perderam a memória do mistério se horrorizaram diante dessa ousadia humana. Denunciaram. Houve um que gritou que Deus estava morto. Claro. Ele não conseguia encontrá-lo naquele quarto de horrores. Gritou que nós éramos os assassinos de Deus. Foi acusado de ateu. Mas o que ele queria, de verdade, era quebrar todas aquelas máscaras para poder de novo contemplar o mistério infinito. Outro que fez isso foi Jesus. “Ouvistes o que foi dito aos antigos; eu porém vos digo...“ O deus pintado nas paredes do templo não combinava com o deus que Jesus via. O deus sobre que ele falava era horrível às pessoas boas e defensoras dos bons costumes. Dizia que as meretrizes entrariam no Reino à frente dos religiosos. Que os beatos eram sepulcros caiados: por fora brancura, por dentro fedor. Que o amor valia mais do que a lei. Que as crianças são mais divinas que os adultos. Que Deus não precisa de lugares sagrados - cada ser humano é um altar, onde quer que esteja."

Por Rubem Alves

No comments:

Post a Comment